quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A PREGAÇÃO É CRISTO CHEGANDO A NÓS - Donald K. McKim

No qüingentésimo ano do aniversário de Martinho Lutero (Lutero nasceu em 10.11.1483), a vida e pensamentos do Reformador estão sendo estudados com mais intensidade do que de costume. A teologia de Lutero está sendo testada, suas preleções examinadas, sua correspondência pesquisada, sua personalidade investigada.

Mas o que dizer sobre o pregador Lutero? Lutero foi um pregador de primeira classe. As estimativas são que ele pregou no mínimo 4.000 sermões, e aproximadamente 2.300 desses sermões foram preservados. Comparada com as pregações de seus precedentes medievais, Bernardo de Clairvaux, Antônio, e mesmo o grande Savonarola, a pregação de Lutero distingue-se em conteúdo e estilo. E.C. Dargan na “História da Pregação” considerou a pregação de Lutero como “a melhor e principal obra de sua vida ocupada e diversificada”. Lutero permanece na “primeira fileira” como “um dos maiores pregadores de todos os tempos”.

O que os pregadores de hoje podem aprender com Lutero? A Europa do século XVI durante os turbulentos dias da Reforma dista muitos séculos do nosso mundo contemporâneo. Nossa situação e contexto são drasticamente diferentes. Porém, existem lições vitais que Lutero pode oferecer à pregação. Ele é um modelo que ainda pode instruir os pregadores da Palavra que têm a mesma paixão que Lutero possuía pela proclamação do evangelho.

DEUS FALA ATRAVÉS DO PREGADOR

Para Lutero a pregação era um meio da graça. Realmente ele via Deus falando através da pregação da Palavra. Ele disse: “Sim, eu ouço o sermão; mas quem está falando? O ministro? Absolutamente não. Você não ouve o ministro. Na verdade, a voz é dele, mas meu Deus está falando a palavra que ele prega”. Para Lutero isto significava que o poder da Palavra e a graça de Deus vem através da pregação, apesar das limitações humanas do pregador. Lutero declarou em um dos seus sermões: “Mesmo que fosse uma jumenta falando, como no caso de Balaão (Nm 22:28), ainda assim seria a Palavra de Deus”.

Lutero viu a pregação como um meio da graça que Deus usa para dar o Espírito Santo àqueles que ouvem o evangelho. Ele disse que a pregação do evangelho e “um meio, como se fosse um tubo, pelo qual o Espírito Santo flui e entra nos nossos corações”. A Palavra proclamada é o “veículo do Espírito Santo”.

Apesar de Lutero às vezes ter ficado deprimido a respeito do ofício de pregador, sua teologia da pregação como um meio da graça o impeliu a pregar vigorosamente por toda sua carreira. Ao finalizar seus sermões Lutero acreditava que o pregador, embora ciente de falhas pessoais, podia ainda assim dizer: “Aqui Deus fala, o próprio Deus tem falado isto. Fui um apóstolo de Jesus Cristo neste sermão”. Em outras palavras, no sermão a pessoa encontra o próprio Deus.

Os pregadores contemporâneos bem podiam redescobrir esta confiança no propósito de Deus com a pregação. Para isso, não é preciso estimular a idolatria, o orgulho pernicioso ou o “culto da personalidade” que glorifica a pessoa do pregador às custas das maravilhas da mensagem. A confiança do pregador muitas vezes é renovada se ele prega crendo que Deus pode e vai usar suas palavras gaguejantes para expressar sua própria pessoa. Esta convicção pode levar-nos a ver o sermão como um evento, um “acontecimento” entre Deus e as pessoas onde algo de tremenda importância pode ocorrer. Vidas podem ser transformadas, perspectivas podem ser alteradas, novas visões do chamado e obra de Deus podem ser reveladas, e pessoas podem ser curadas pela graça de Deus. A pregação vista nesta perspectiva nos incentivará como pregadores. Encorajar-nos-á a fazer o melhor possível em nossa preparação e proclamação. Levar-nos-á a cumprir nossas tarefas com esperança renovada. Compreender a pregação como Lutero compreendeu, como um meio da graça de Deus, pode, se o permitirmos, revolucionar nossos ministérios.

O CONTEÚDO É A VERDADEIRA DOUTRINA

Para Lutero o conteúdo da pregação é muito evidente. São as boas novas do evangelho conhecidas em Jesus Cristo e expressadas na teologia cristã. A doutrina cristã compreendida pela igreja deve ser ousadamente proclamada. Como Lutero escreveu: “A verdadeira doutrina deve ser pregada publica e constantemente; nunca deve ser negligenciada ou escondida pois ela é a “vara da retidão”.

O tema da proclamação cristã é o foco tanto para o pregador como para a congregação. A atenção de ambos é dirigida àquele que é a fonte da própria pregação. Pois “os verdadeiros pregadores devem cuidadosa e fielmente ensinar apenas a Palavra de Deus e tão-somente visar sua honra e louvor. Da mesma forma os ouvintes devem dizer: ‘Não cremos em nosso pastor; mas ele nos fala de outro Mestre chamado Cristo. Nosso pastor nos leva a ele; o que seus lábios falarem atenderemos. E atenderemos nosso pastor à medida que nos dirige a esse verdadeiro Senhor e Mestre, o Filho de Deus’“. Desta maneira a igreja é nutrida pela fonte de sua vida, Jesus Cristo, através do seu evangelho na medida que a igreja o compreende e proclama.

A seriedade com que Lutero encarou a tarefa de pregar é reforçada quando seus sermões são lidos como se fossem pregados num campo de batalha. Lutero via o sermão como parte de uma guerra cósmica pelas vidas das pessoas. O sermão era uma espécie de “acontecimento apocalíptico” que coloca a vida da pessoa em movimento - ou na direção do céu ou do inferno. Ninguém pode ouvir sem depois tomar uma posição. “Ninguém pode ouvir em fria apatia” disse o Reformador.

A própria forma dos sermões de Lutero indica este fato. “Quando elaboro um sermão, elaboro uma antítese”, disse Lutero. Dois partidos se opõem. Deus e Satanás lutam enquanto a vitória de Cristo está sendo proclamada. Lutero enfatizou a antítese entre, o Deus que os homens buscam conhecer através da razão e especulação humanas e o Deus que se revela a si mesmo na sua Palavra, especificamente no Filho de Deus, o homem Jesus. Filosofia ou razão humana por si so nunca nos dão o verdadeiro conhecimento de Deus. Lutero energicamente denunciou as especulações escolásticas do seu tempo e referiu-se à razão separada de Deus como “a meretriz do diabo”.

Mas ao pregar Lutero enfatizou que o conteúdo da pregação não deveria ser “sutilezas filosóficas... mas a promessa que gera confiança”. Deus revelou-se a si mesmo nas promessas do evangelho revelado em Jesus Cristo. Nele “aprendemos a fixar nossos olhos na face de Deus”. Todas as outras tentativas para alcançar um conhecimento de Deus são antiteticamente contrárias à Palavra de Deus. Aquele que busca a Deus fora de Jesus acha o diabo. Esta falsa teologia leva somente para condenação.

Portanto, a verdadeira pregação deve ser fundamentada nas Escrituras e focalizada em Deus que revela sua verdadeira natureza em seu Filho Jesus. As pessoas são chamadas para ter fé nele. Esta é a decisão crucial de suas vidas. Significa vida ou morte. Finalmente, somente esta pregação bíblica produzirá resultados. A palavra falada do evangelho “não é ineficaz; ela produz fruto”. Lutero disse que “a Palavra do Senhor não volta vazia, mas produz fruto, assim como a chuva rega a terra e a fecunda” (Is 55:10-11).

Os frutos do evangelho surgem da pregação que tem profundas raízes no solo de Jesus Cristo e seu evangelho.

A igreja precisa da pregação bíblica constantemente. No meio de muitos contendores por simpatia e lealdade de milhões, o evangelho de Cristo exige um compromisso definido no interior de cada um. Em oposição a todas as ideologias que colocam confiança apenas nos recursos humanos permanece a afirmação bíblica do cristão: Deus se revelou a si mesmo através de seu Filho Jesus Cristo. Proclamar isto e toda doutrina cristã com integridade é o desafio contínuo para o pregador de hoje. A pergunta para Ezequiel foi: “Poderão reviver esses ossos?” (Ez 37:3). A pergunta para nós é: “Poderá reviver essa doutrina”? Será que podemos traduzir a herança bíblica herdada da nossa tradição cristã para uma proclamação que responde as perguntas de nossa cultura contemporânea? Será que nossa pregação pode tratar poderosamente os problemas atuais intelectuais, sociais e éticos com perspectivas que são baseadas no evangelho de Cristo? O próprio testemunho de Lutero ao pregar coloca esta decisão diante de nós. Ele nos desafia a ser biblicamente responsáveis no serviço de pregar.

A PREGAÇÃO DEVE SER VÍVIDA E CONCRETA

Lutero é famoso por escrever e falar vividamente. Este era o seu estilo, que se manifestava naturalmente em seus sermões e pregações. Porém, Lutero era também convicto da importância de conscientemente tornar a pregação vívida e concreta. Ao comentar o uso que Paulo fazia de linguagem figurada em Gálatas, Lutero disse:

“As pessoas são cativadas mais facilmente por comparação e exemplos do que por discussões difíceis e sutis. Preferem ver um quadro bem pintado do que um livro bem escrito”. Os sermões de Lutero são cheios de exemplos de sua linguagem pitoresca ao pregar. Já que todo mundo não morre completamente esticado, Lutero referiu-se à morte como “um velho esticar de pernas”. Ele chamou aqueles que buscam prosperidade “senhores de sua barriga”. Se a salvação pode ser obtida somente através de trabalho duro, Lutero observou que logo então cavalos e burros certamente estariam no céu! O fato de ir à igreja não garante o céu; cachorros passeiam pela igreja e saem do mesmo jeito que entraram como cachorros!

Para Lutero os melhores sermões são simples. Um pregador deve pensar em sua audiência quando utiliza métodos e imagens de comunicação. “Um pregador dedicado deve considerar os jovens, os trabalhadores e empregadas na igreja, e aqueles que não têm cultura.” Como era de se esperar, Lutero adaptou sua linguagem à capacidade de sua audiência.

Nesta área Lutero seguiu o princípio do ajustamento, um princípio que os oradores antigos enfatizaram e grandes pregadores cristãos como João Crisóstomo, Agostinho, e Calvino praticaram. Um pregador acompanha o nível de sua audiência, ajustando sua linguagem ao nível do entendimento dos ouvintes. Lutero disse que o pregador “deve ajustar-se a seus ouvintes assim como uma mãe que está amamentando faz com seu bebê. Ela conversa com a criança e a amamenta em seu peito, pois ela não precisa de vinho ou malvasia. É desta forma que os pregadores devem agir; devem ser simples em seus sermões”. Ele acrescentou: “Quando estamos no púlpito, devemos amamentar o povo e dar-lhes leite para beber... Os assuntos e especulações elevados devem ser reservados para os sabichões. Não vou levar em conta os doutores Pomeranus, Jonas, e Philipp enquanto prego, pois o que falo eles sabem melhor que eu. Não prego para eles, mas para os meus pequenos Hans e Elizabeth; estes eu levo em conta.” Para Lutero o sermão deveria ser infantil.

O desafio de Lutero ainda permanece conosco. O pregador é constantemente chamado para usar sua imaginação a fim de retratar vividamente as verdades da fé cristã. O próprio Jesus era perito em comunicação vívida. Seus dizeres e parábolas apresentavam eficazmente o reino de Deus e outros temas numa linguagem que cativava a imaginação dos seus ouvintes e provocava neles uma resposta. Como estudos contemporâneos de parábolas têm mostrado, as parábolas de Jesus eram “acontecimentos de linguagem”, abrindo e atraindo sua audiência à participação e envolvimento. Captar a intenção de Jesus em suas parábolas de comunicar vívida e criativamente - vitalizaria muitos sermões contemporâneos! Ajustar nossa linguagem e imagens às necessidades e natureza de nossas congregações deve ser algo básico. É um objetivo que devemos ter sempre diante de nós. Comunicar sensivelmente através de aprender como a linguagem funciona e depois deixá-la trabalhar para nós na pregação é uma responsabilidade importante. Como foi com Jesus e Lutero, a simplicidade ainda é a chave para nós.

Porém, fazer coisas simples é muitas vezes uma tarefa complexa. Trabalho e estudo árduos ainda são essenciais. Lutero desafia todo pregador a se esforçar.

A PREGAÇÃO É CRISTO CHEGANDO A NÓS

Para Lutero a pregação era a “palavra falada” de Deus. Pela pregação Jesus apresenta salvação à raça humana. Pois “a pregação do evangelho nada mais é do que Cristo chegando a nós, ou nós sendo levados a ele”, disse o Reformador. Cristo vem pelo Espírito Santo. O Espírito Santo não opera independentemente da Palavra, antes a confirma.

Lutero enfatizou o fato de que Cristo é o verdadeiro objeto de nossa proclamação. Freqüentemente ele dizia que “nada além de Cristo deve ser pregado”. O ponto central de sua controvérsia com teólogos católicos romanos e teólogos reformadores tais como Zwínglio e Calvino sobre os sacramentos foi quanto à presença real de Cristo na ceia. Mas para Lutero a real presença de Cristo também estava na proclamação dele. No evento da pregação o Deus triuno - Pai, Filho, e Espírito Santo - está realmente presente e ativo. A “plenitude da Divindade atrairá e segurará você” quando você “guardar a palavra em seu coração”, Lutero disse em um sermão sobre João 6:47.

Sendo Jesus Cristo o centro da proclamação cristã, Lutero concluiu que ambos, pregador e sermão, devem ser modelados segundo Cristo. Na encarnação o Filho de Deus se humilhou a si mesmo. Lutero disse que da mesma forma o pregador deve ser humilde e encarar a si mesmo junto com a congregação como um pecador por quem Cristo morreu. O sermão também deve ter o formato de Cristo, pois deve mostrar que “a realidade do Deus a quem devemos nos curvar em fe é realmente muito simples”. Muitos notaram que os próprios sermões de Lutero se tornaram mais e mais simples à medida que ele se aproximava do fim de sua vida.

O impulso evangélico das pregações de Lutero é visto em sua ênfase sobre Cristo e sua obra na cruz, como também na sua insistência de que o evangelho exige uma decisão pessoal. Pela pregação a pessoa é confrontada com Jesus Cristo vivo que nos chama para crer nele. Ninguém além da própria pessoa pode crer. Não há alternativa para o compromisso pessoal. Como Lutero disse: “É impossível alguém crer no lugar de outrem como se sua fé fosse um substituto para a fé pessoal do outro”. Pois “um cristão é uma pessoa com decisão própria; ele crê por si mesmo e não como representante de mais alguém”.

Por isso a pregação, tanto para o pregador como para o ouvinte, tem uma importância tão tremenda. Deus fala pela pregação. Jesus Cristo é propagado. O Espírito Santo age. As promessas de Deus são ouvidas, a fé é criada, e uma nova vida aparece. É indispensável ouvir a palavra continuamente mesmo para os próprios pregadores. Como Lutero disse: “Mesmo que os pregadores tenham o ofício, o título, e a honra de serem colaboradores de Deus, ninguém deve pensar que é tão sábio ou tão espiritual que pode desprezar ou perder o mais insignificante sermão. Isto é especialmente verdade porque ele não sabe qual a hora em que Deus fará sua obra nele através de outros pregadores.” Pregamos com excitação e expectativa, e ouvimos com excitação e expectativa, pois Cristo está presente em nosso meio.

A pregação contemporânea produzirá interesse e antecipação entre nós somente se for centralizada em Jesus Cristo. Ele tem sido o foco de toda genuína proclamação cristã desde os dias da primeira igreja até hoje. O kerygma (pregação) cristão antigo era uma proclamação dos atos de Deus em Jesus Cristo. Cristo era o conteúdo da proclamação. Pela obra do Deus triuno, Jesus Cristo pode ser nosso contemporâneo. Sua Palavra pode nos mover, e seu Espírito pode levar-nos a novo entendimento e ação. Nos simplesmente não sabemos onde e quando podemos ser tocados por seu poder ou levados por seu amor a novas áreas de iluminação ou envolvimento. Isto significa que o mundo inteiro se abre diante de nós. O chamado de Deus em Jesus Cristo pode levar-nos a qualquer lugar. Sua presença através da palavra pregada pode produzir nova vida. Falamos e ouvimos com expectativa à medida que Cristo é transmitido pela palavra pregada.

O discernimento de Lutero desafia-nos a cuidar intensamente da proclamação do evangelho. Levaremos nossa tarefa a sério se crermos que Deus fala através de nós. Verificaremos se o conteúdo de nossa pregação é biblicamente baseada no evangelho. Comunicaremos o mais vividamente possível, utilizando uma melhor percepção sobre linguagem e estilo. E centralizaremos nossa proclamação em Jesus Cristo, que vive entre nós e nos conclama a continuar vivendo vidas de fé.

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Este artigo, escrito por ocasião do qüingentésimo aniversário do nascimento de Lutero, mostra de forma clara e surpreendente a revelação da palavra de Deus que deu origem à Reforma Protestante. Mas se compararmos essa revelação com os conceitos e doutrinas das igrejas protestantes atuais, veremos uma distância abismal entre as duas posições. Na verdade, o que Lutero viu e realizou na sua Reforma em 1500 foi apenas o começo. Hoje precisamos de uma segunda Reforma para redescobrir a palavra que traz Cristo em verdade para nós.

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